Conto de Natal – As velhas que não são nem para os gatos
Naquela terra pequena do interior, encravada entre montes e árvores antigas, os homens iam morrendo mais cedo do que as mulheres. Uns porque a vida lhes pesara nos pulmões, outros porque o vinho e o silêncio lhes tinham feito a cama, outros ainda porque simplesmente assim é nas terras onde o tempo corre devagar e a dureza do trabalho não perdoa. Ficavam elas. Sempre elas. As mulheres. Viúvas por hábito, por destino ou por antecipação.
A vila sabia distingui-las sem nunca o dizer em voz alta, como se fosse um saber antigo, passado de geração em geração, mais antigo do que o sino da Câmara Velha.
Havia as primeiras: as que sobreviviam não só aos maridos, mas também ao cansaço. Eram as mulheres da família e da comunidade. Faziam camisolas para os netos, sopas para quem estava doente, bolos para as festas e flores para a procissão. Sabiam o nome de toda a gente, lembravam-se dos aniversários, perguntavam “como está a perna?” ou “já passou essa tosse?”. Eram activas, bondosas e simpáticas, mesmo quando a vida lhes tinha levado quase tudo. Tinham aprendido que dar era uma forma de continuar a existir.
Depois vinham as segundas: as que não gostavam muito de pessoas, mas não faltavam à missa. Sentavam-se sempre no mesmo banco, conheciam os cânticos de cor e benziam-se com rigor quase militar. Não tinham grande paciência para conversas nem para visitas, mas exprimiam amor de outra maneira: cuidando dos animais. Alimentavam gatos vadios, falavam com cães como se fossem gente, deixavam restos de comida à porta, “para quem precisar”. O mundo humano cansara-as, mas ainda acreditavam numa bondade silenciosa, de quatro patas e olhos atentos.
E havia as terceiras. As que a vila chamava, com crueldade e verdade misturadas, as velhas que não são nem para os gatos.
Essas não gostavam de ninguém. Nem de pessoas, nem de animais, nem de nada que respirasse. Reclamavam do tempo, ou estava frio de mais ou calor de mais; dos preços, tudo caro, tudo um roubo; das dores, no joelho, nas costas, no estômago, na alma; e, sobretudo, do outro. Tratavam mal sem motivo aparente, como quem distribui fel porque já não sabe fazer outra coisa. Tinham incorporado a solidão de tal maneira que ela lhes crescera por dentro, endurecendo-lhes o olhar e a voz.
Eram uma espécie de Grinch à portuguesa, sem gorro verde nem riso maquiavélico, mas com um xaile gasto e uma lista interminável de queixas. Nunca estava nada bem. Se chovia, estragava-lhes os ossos; se fazia sol, dava-lhes dores de cabeça; se havia festa, era barulho; se havia silêncio, era abandono. Viviam numa prisão que ajudaram a construir, pedra a pedra, palavra amarga a palavra amarga.
Chegava o Natal e a vila mudava de cheiro. A lenha ardia, o açúcar queimava devagar nas rabanadas, o sino tocava com mais vontade. As primeiras mulheres enchiam as casas de gente. As segundas iam à missa do galo e deixavam um prato extra para o gato do vizinho. As terceiras… ficavam sozinhas.
Sozinhas, mesmo quando diziam que preferiam assim. Reclamavam que as bolachas já não eram como dantes, que o queijo lhes fazia mal ao estômago, que ninguém pensava nelas, mas não abriam a porta a ninguém. Ou melhor, diziam que não queriam abrir, quando no fundo era isso que mais temiam.
Naquela véspera de Natal, uma das primeiras mulheres, dessas que sabem ouvir o que não é dito, bateu à porta de uma dessas velhas que não eram nem para os gatos. Levava um prato simples, um pedaço de bolo, e sobretudo uma frase curta, sem moral nem sermão:
“Boa noite. Pensei em si.”
A velha resmungou. Disse que estava frio, que aquilo lhe fazia azia, que não tinha pedido nada. Mas a porta ficou entreaberta. E naquele espaço mínimo entrou o cheiro do bolo, o calor de outra presença, a ideia perigosa de que talvez ainda fosse possível não estar sozinha.
No Natal, naquela terra pequena do interior, continuaram a existir viúvas, categorias e solidões. Mas também ficou provado, pelo menos uma vez por ano, que mesmo as velhas que não são nem para os gatos são, afinal, gente. Gente cansada, azeda, difícil, mas gente. E que são elas, precisamente elas, que mais precisam de uma palavra de conforto e de uma porta aberta, nem que seja só por um instante, na noite em que o mundo inteiro parece lembrar-se de amar.