Houve tempos em que cantar ainda não era um património cultural, a comida ainda não se chamava gastronomia, as lonjuras ainda só cansavam as pernas e os sonhos, a calma não acalmava assim tanto e o vinho não se bebia em copos de pé alto nas casas de Turismo Rural. Cantava-se para purgar contrariedades, comia-se para se matar a fome, calcorreavam-se léguas de pó e lama, suavam-se sóis debaixo das boinas e o vinho fazia esquecer a manhã seguinte e bebia-se nas tabernas em copos pequenos como a vida. Os tempos mudaram e mudou a percepção que as pessoas têm de nós. Aprendemos que aquilo que anteriormente era visto como provinciano, popularucho, folclórico, é afinal o que nos define e nos distingue. Quem nos havia de dizer a nós que o cante, o vinho, o pão, o montado, o azeite, a lonjura e o vagar, seriam a trave mestra de uma identidade tão amada? Soubemos explicar o que temos e o que somos. Deixámos de ter vergonha e algum complexo de inferioridade, abrimos portas, janelas, baús, peitos, bocas, olhos, montes, horizontes, memórias, museus. Resgatámos a poesia popular, as violas campaniças, os grupos corais, o despique e o baldão, recuperámos palavras perdidas, salvámos receitas e histórias. Soubemos fazer a tradução da tradição. Mais do que um entretenimento ou um passatempo, a tradição é um abraço, uma partilha, uma questão existencial, uma causa colectiva.
Vítor Encarnação in Diário do Alentejo