segunda-feira, 29 de abril de 2019

Dos melhores textos sobre o Alentejo que li nos últimos tempos

Houve tempos em que cantar ainda não era um património cultural, a comida ainda não se chamava gastronomia, as lonjuras ainda só cansavam as pernas e os sonhos, a calma não acalmava assim tanto e o vinho não se bebia em copos de pé alto nas casas de Turismo Rural. Cantava-se para purgar contrariedades, comia-se para se matar a fome, calcorreavam-se léguas de pó e lama, suavam-se sóis debaixo das boinas e o vinho fazia esquecer a manhã seguinte e bebia-se nas tabernas em copos pequenos como a vida. Os tempos mudaram e mudou a percepção que as pessoas têm de nós. Aprendemos que aquilo que anteriormente era visto como provinciano, popularucho, folclórico, é afinal o que nos define e nos distingue. Quem nos havia de dizer a nós que o cante, o vinho, o pão, o montado, o azeite, a lonjura e o vagar, seriam a trave mestra de uma identidade tão amada? Soubemos explicar o que temos e o que somos. Deixámos de ter vergonha e algum complexo de inferioridade, abrimos portas, janelas, baús, peitos, bocas, olhos, montes, horizontes, memórias, museus. Resgatámos a poesia popular, as violas campaniças, os grupos corais, o despique e o baldão, recuperámos palavras perdidas, salvámos receitas e histórias. Soubemos fazer a tradução da tradição. Mais do que um entretenimento ou um passatempo, a tradição é um abraço, uma partilha, uma questão existencial, uma causa colectiva.
Vítor Encarnação in Diário do Alentejo

terça-feira, 16 de abril de 2019

As flores de plástico

Conheço-o da rua a passear, ajudado pela bengala. É utente da SCMM e por vezes sobe a Rua das Portas da Vila para vir aqui à mercearia, normalmente para comprar uma garrafa de vinho tinto para oferecer a um familiar que o visita regularmente.
Entrou logo cedo e disse rapidamente:
- Tem cá flores de plástico?
Eu chateada digo:
- Bom dia
Diz novamente:
- Tem cá flores de plástico?
E eu insisto:
- Bom dia
E ele volta à carga:
- Não tem? Flores de plástico?
Desisto desarmada e faço cara feia
Ele aproxima-se do balcão e diz-me:
- Desculpe menina, mas eu ouço cada vez menos
(merceeira engole em seco, afinal não era má educação ou má vontade, é só surdez)
- Precisava de um ramos de flores de plástico, quero ir visitar a minha mulher ao cemitério e não tenho transporte para ir a Castelo de Vide tratar disso, os chineses sei que têm, mas resolvi entrar para lhe perguntar.
- Lamento imenso mas não, só tenho um ramo de flores secas...Ai, espere lá...tenho lá em cima um pequeno, vou buscar.
Trago um ramo bem bonito que comprei uma vez na Loja do Gato Preto e nunca cheguei a dar uso.
- Oh que pena, são tão bonitas, mas são pequenas. A campa da minha senhora é larga e tem uma jarra muito grande, iam cair lá para dentro, não dá. Obrigada por ter ido lá acima e tudo. Eu vou aqui ao taxi a ver se resolvo uma ida a Castelo de Vide. Obrigada na mesma.
- Ora essa. Tenha um bom dia
Ele sai devagar e não me responde novamente ao bom dia. Mas desta vez não faz mal, não me importo, não levo a mal. Não temos que levar a mal todas as falhas dos outros. Ficamos mais leves quando perdoamos as pequenas falhas, E se procurarmos bem, cá dentro de nós, há sempre razões maiores que nos ajudam a aceitar , e a entender.

domingo, 14 de abril de 2019

Marvão já não é para os que cá estão



Assisto nas notícias às reportagens sobre Lisboa e Porto em que falam da especulação imobiliária, que a classe média já não consegue viver no centro da capital e que o Alojamento Local mudou a face das grandes cidades. Ouço as notícias como algo de distante e que não nos diz respeito, como se de outro país se tratasse e as diferenças entre o litoral e o interior não deixassem cá chegar o "flagelo".
Mas não é bem assim.
Viver num centro histórico de uma vila do interior não é para todos. Faltam serviços, não existem casas modernas nem as comodidades contemporâneas. Não existem garagens ou elevadores, não há aquecimento central nem internet de alta velocidade. Mas quem escolhe viver aqui, pesa na balança a felicidade que trazem as vistas largas, a segurança,  tranquilidade e os bons dias dados aos vizinhos.
A autarquia faz a sua parte, promovendo o arrendamento dos imóveis municipais com rendas baixas, mas não controla bem as regras dos regulamentos que impõe, não simplifica nem promove  a reabilitação dos espaços,  nem dá valor a preocupações como o ordenamento do trânsito. Deixa andar...
Mas a sensação é que de facto, também aqui, Marvão já não é para os que cá estão. Somos cada vez menos. Perdem-se vizinhos e não nascem crianças...o turismo e o grande poder de compra absorvem as casas que estão à venda.
Colocar à venda uma casa por um preço especulado, afasta o português de classe média que se quer fixar. São as regras do mercado.
E depois vem o turista que quer conhecer a padaria tradicional, que pergunta se a escola ainda tem crianças ou que precisa comprar uma caixa de aspirinas e não há onde...já fechou...
É bom ter as fachadas limpas e pintadinhas de branco...claro que é, mas também importa promover a vida dentro dessas casas...
Transformam-se o sítios em museus despidos, desinteressantes, sem ninguém a circular nas ruas passadas as sete da tarde.
Uma boa experiência turística passa por sentir a vida das comunidades...ora se a comunidade já não existe, se os jovens que aqui nasceram tiveram que sair por não poderem cá comprar casa ou trabalhar, então é tudo falso, sem conteúdo, vazio.
Equilíbrio é a palavra chave. E se eu valorizo muito esse sentimento de pertença, se depende de mim resistir, fazer a minha parte no que toca a manter tradições, participar e prestar um serviço aos demais, ao mesmo tempo também gostaria de sentir que pertenço a uma comunidade onde há esperança e futuro. Hoje não é assim...veremos amanhã,  aliás...veremos o que nos reserva o amanhã.